Preta
Por Cristyam Otaviano - dezembro 11, 2019
Aquele ponto de ônibus nunca mais foi o mesmo sem Ela.
Passou e de longe se via que Ela era torta. Andava ereta, dura e pisava forte. É que sua tortura já não era mais algo dessa vida. De onde vinha eu não saberia explicar, não consegui datar. Quem sabe fosse elétrica, tecnológica, programada ou inorgânica, mas Ela era certa de si e não poderia ser obra dos humanos. Pude sentir seu cheiro homem. Por trás dos óculos Ela coloria um ponto de ônibus, brilhou meio ao sol. Pobre, ereta, bicha, forte, estranha, segura, pacífica, guerreira, favelada, coitada, maliciosa, certa e acima de tudo Preta.
Sugando olhares de homens era pagã, cristã, macumbeira, indígena e pré-colombiana, de longe ninguém imaginou que carregasse um mundo dentro de sua pele. Cultural, própria e cartográfica, Ela distorcia a noção. Asiática, Europeia, Africana, Americana e Latina. Um meio de existência que rasgava toda razão existente. Ela existe e está além dos homens, era atual. Semente de uma mulher, tinha a potência de Marielle. Andava e fazia o futuro acontecer, mas não aquele que sonhou um dia.
Em manifestação de força, me aparecia onde quer que se fosse, sempre pacífica. Vi nela uma força inédita. Se pôs ao sol e me olhou em um ato de possessão. Por um momento não fui eu, sem linguagem houve comunicação. Ali, naquele ponto de ônibus, a Preta possuía as cores, poderia ser qualquer uma, mas quis a força de ser negro. A cobiça de Chica da Silva.
Foto: Shudu Gram |
Histórica, carregava sobre si o peso de uma humanidade. Decidida por uma genética dominante, negada pela própria história, Ela existia, isso posso afirmar. Andava com passos de Dandara, e pelo simples fato de existir provava sua coragem. Lutaria até quando pudesse, pois, em tempos de silêncio, existir em tortura, ser torto, é um ato de coragem. Artística, sua morte será a atualização da realidade existente.
Triplica, denotava-se entre os três sexos. Secreta muitas vezes, andava pelas ruas numa manifestação do desconhecido, ainda nem entendido pelos homens. Preta, Ela era um acontecimento na história, estava dada a certeza dos céus. Talvez essa fosse a única justiça que teria perante os homens. O tempo seria d'Ela enquanto existisse.
Numa ciranda com seus iguais, Ela era eixo próprio de um lugar, onde lutas eram vãs. Datava-se de uma época recente, existe mesmo após os fatos. Não sei seu nome, mas soube naquele momento que era uma manifestação, um enigma indecifrável até pela ciência. Um ritual da vida pós modernidade. Era inédita.
E há quem duvide que seu sangue seja vermelho, talvez o derramassem em nome da verdade. E os homens seriam então amaldiçoados. O espírito da Preta estaria livre em vida, seria leve. Abençoaria os negros numa existência plena. Seria Ela Deus? Seria Ele, mulher? Eis o mistério da fé.
De alma dilacerada pela história e essência rompida pela violência, Ela seguiu seu caminho. Traduzindo uma existência a um acontecimento, a Preta me ensinou que existir em épocas de guerra, ser torto, ser errado, ser alguém além da própria carne, sem pronunciar uma só palavra, gritando em silêncio, se mostrando ao sol e ser negro, é um ato de protesto. Seja, exista, aconteça!
Numa vida desgraçada, em uma casa de periferia, Ela iria dormir esperando um dia novo amanhecer e assim remontar o mundo. Enfeitaria a nova história com suas verdades. Ela daria para um futuro jamais imaginado, a chance de poder acontecer.
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