Que todos os homens me perdoem. Pois, num dia desses de chuva, eu fui a chuva que caia.
Eu e todos meus
sentidos. Viam, ouviam, sentiam. Caíram de mim quando a chuva chegou. Havia alguém deitado, meio ao concreto. Era eu, estava pesado e não havia muito em mim. Então o que era? Não se sabe, hoje, não me pertencem mais essas coisas, nem são minhas. Habitam uma profundidade qualquer, não sei onde foram parar.
Se fosse outro, isso não estaria certo. Existem segredos que vós jamais saberá, são tão meus, que não mostro a ninguém. Sou eu. Meu viver não é simples, dado, fácil, exato. Sou avesso a mim mesmo, e preciso me revirar. Vivo assim como sou, avesso ou não.
Ser quem sou é uma incógnita. Sou um mistério. Às vezes não sei quem sou, e se sou, apenas existo. Quem tu és? O que carregas aí em ti? Hábito algo entre alguém e nada. Enquanto o céu se acaba em fogo, me transformo.
O controle é uma ilusão. Poder e submissão. A chuva cai sobre alguém deitado no chão, sou eu. Segurando um mundo em mim. Magoas por amores que não pude viver, mas pude sentir, pois sou livre, e não há desespero maior que não viver o que se sente. Amei, mas nunca vivi amores inteiros, por isso sou incompleto.
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Chovia. Fora de hora. Há um corpo no concreto, inerte, sem cor, cheirando a tristeza, com sabor de café já velho e sem brilho algum. Nem se sabe mais quem é. Um ser infinitésimo. Dez dedos em uma garganta. Sentimentos solúveis em água. Mas não sou eu. É um processo.
Um choro de adeus, um desaprender de coisas. Amores não vividos. Versões de fatos, que dizem respeito somente a ele. Verdades desconhecidas. Feridas abertas. Gritos de um peito em dor. São três da manhã, é mais um dia para ele. Eram coisas que ele desconhecia, explicava e já não lhe pertenciam mais. Estavam livres. A chuva levou.
No cheiro da terra molhada trazendo a chuva de longe. Em pele, arrepios e tremores. Vendo o mundo explodir em flashes, desabar em choro, lágrimas que nem mais me pertencem. No ouvir do cantar da chuva e no gritar de uma tempestade de trovões, vivo a musica dos céus. Sou eu. No sabor da água, sem nada, vida que não é vida, não vive, se desfaz na chuva.
Uma morada vazia. Alguém indefinido. Porque já não sou mais eu.
Texto vencedor do 2º Lugar, na categoria Contos, do Concurso Literário Pedro Guerra.